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O Manifesto MBB: Nunca foi só futebol

A situação dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexuais, assexuais e mais (LGBTQIA+) no Brasil está repleta de contradições; enquanto teoricamente nossos direitos são protegidos, na prática enfrentamos níveis extremos de violência. A legislação brasileira sobre direitos LGBTQIA+ está entre as mais avançadas de qualquer nação. Por exemplo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é legal (decisão do Supremo Tribunal Federal, STF, de 2011), é crime discriminar por gênero ou orientação sexual (decisão do STF de 2019) e o atendimento referente a afirmação de gênero está disponível por meio do Sistema Publico de Saúde (SUS, desde 2001). No entanto, as taxas de violência contra pessoas LGBTQIA+ também estão entre as piores do mundo, principalmente para brasileiros trans e não-conformes de gênero. De acordo com a organização Trans Murder Monitoring (Monitoramento de assassinato de pessoas trans, https://transrespect.org/en/map/trans-murder-monitoring/) o Brasil tem a maior taxa de assassinato de pessoas trans no mundo: 1645 pessoas trans foram mortas no Brasil entre janeiro de 2008 - setembro de 2021. Com uma abordagem interseccional, sabemos que essa violência afeta desproporcionalmente os membros de nossa comunidade que também são negros, indigenas, pobres, gordos, perifericos, deficientes, rurais, do Norte ou Nordeste do pais, e imigrantes. Abordar as aparentes contradições entre a presença de direitos legais para pessoas trans e a ausência dos recursos para pessoas trans mais afetadas, envolve colocar as necessidades dos mais marginalizados no centro das lutas por justiça. É hora do movimento LGBTQIA+ centrar as necessidades e as vidas de pessoas trans, especialmente aquelas de nós que enfrentam múltiplas opressões.


O Meninos Bons de Bola (MBB), primeiro time de futebol trans do Brasil, busca fazer isso no e através do futebol. Somos um coletivo que acolhe homens transgêneros, pessoas transmasculinas, mulheres trans e travestis. O MBB se formou em um momento de política mais aberta (em 2016) e estamos persistindo com o surgimento de movimentos de direita no Brasil e no mundo. Agora, neste momento, nossa mensagem talvez seja mais urgente do que nunca.

FIG 1. Photo taken by Maurício Rodrigues Pinto, on June 04, 2022, during the friendly match between Meninos Bons de Bola and Real Centro. The match was part of the inauguration program of the Nike multi-sports court in Ibirapuera Park, São Paulo (SP).

As necessidades das pessoas trans e marginalizadas estão ameaçadas em particular desde a recente ascensão da direita. No Brasil, os conservadores estão chamando nossa própria existência de “ideologia de gênero”. Eles usam esse rótulo para afirmar que a luta por nossos direitos é uma ameaça à família tradicional. Descredibilizar as lutas LGBTQIA+ e feministas por justiça ao chamá-las de ideologia de gênero é uma tática conservadora nesta atual iteração das guerras culturais: um termo que descreve a batalha pelo domínio das práticas, crenças e valores de um grupo. Parte da agenda dos extremistas de direita é manter o binário de gênero vivo e bem em áreas como educação, arte e esporte (àreas que definem quem nós, enquanto brasileiros, somos e podemos ser). Por exemplo, a legislação proposta este ano pelo deputado Carlos Bolsonaro (Rio de Janeiro) busca proibir atletas trans de competir.[1] Este movimento para angariar apoio político conservador ao usar atletas trans como bodes expiatórios, é infelizmente muito familiar. Reconhecendo que a luta pela inclusão trans no atletismo faz parte de uma luta maior contra a repressão e o fascismo, exigimos o acesso pleno ao esporte para pessoas de todos e quaisquer gêneros e orientações sexuais.


O esporte mais amado do Brasil é o futebol. Somos a nação do futebol; desde a chegada do futebol (como hoje o reconheceríamos) ao Brasil, no final do século XIX, ele faz parte do nosso tecido nacional.[2] Ainda assim, é um espaço que historicamente excluiu mulheres e pessoas LGBTQIA+. As mulheres foram legalmente proibidas de jogar de 1940 a 1979. Até hoje, há apenas um jogador profissional de futebol que é assumido gay: Richardson, que jogava no São Paulo Futebol Clube (1998 - 2021). Há um homem trans, o Marcelo, que jogava pelo Corinthians no time feminino (2014 - 2018), e jogou na seleção brasileira de futsal feminina (2010, 2011, 2012), mas até hoje busca jogar fora do país num time masculino.[3] Enquanto isso, ele segue trabalhando numa agência de viagem. Uma vez que o futebol no brasil não está aberto e nem preparado para acolher pessoas transgêneras, seguimos exigindo nosso direito ao futebol e ao nosso direito à dignidade.


FIG 2. MBB team photo, taken in São Paulo, Brazil. December 2022. Photo credit: Raphael H. Martins @institutomeninosbonsdebolafc (Instagram).

Ao defender os direitos trans por meio do esporte nacional, os atletas trans fazem crescer o mundo esportivo e os movimentos LGBTQIA+. Em 2016 no Brasil, equipes amadoras LGBTQIA+ começaram a se formar. O primero time cis gay era o Real Centro em 6 de março de 1990. Em 2016 surgem outras equipes no mesmo formato. Um grupo de times cis gays masculinos - os BeesCats do Rio, os Unicornios de São Paulo, e Futeboys de São Paulo - se reuniram para formar a LiGay (2016) e realizaram sua primeira competição em 2017. Apenas dois anos depois a liga tinha mais de 40 times. Aplaudimos qualquer time que esteja desafiando as normas cisnormativas, heterossexuais e masculinas do futebol. No entanto, temos lutado para abrir espaço na LiGay, que é dominado por homens gays cis (que também são frequentemente ricos e brancos). Durante nossa primeira experiência competindo no torneio do LiGay em 2017 (fevereiro 11), enfrentamos comentários transfóbicos como: “Time de Menininhas” e “ Maria Machos”. O mais inesperado é que recebemos mais apoio fora da comunidade LGBTQIA+ e para nós é um pouco triste pois gostaríamos de ser acolhidos e respeitados pela nossa comunidade. Somos gratos pelos times alternativos que nos apoiam como times: Anarquistas (Rosanegra, Celeste Proletária, e Havana Futebol Club); Time gay: (Diversus, Natus); Time de lésbicas: (Boleiras Futebol Clube), e o Time de trabalhadores: (Sindicato dos Bancários). Continuaremos a defender os direitos trans nas chamadas ligas LGBTQIA+ e alternativas, e reconhecemos nossos muitos aliados dentro delas. Ainda assim, nossas experiências negativas deixaram clara a necessidade de criar nossos próprios espaços transcentrados.


O MBB é o primeiro time trans do Brasil. Nasce em 2016 como uma equipe criada por e para homens transexuais (uma pessoa designada com o sexo biológico feminino ao nascer e se identifica com o sexo masculino), a intenção de montar a equipe era para que pudessemos acolher essas pessoas para que tivessem um espaço seguro para a pratica do futebol e para alem disso um espaço para trocas de vivencias. Homens trans são particularmente invisíveis tanto no mundo LGBTQIA+ quanto no mundo esportivo, e com o surgimento da nossa equipe os homens trans e transmasculines começaram a ser vistos não só no futebol mas também na sociedade. Com o passar dos anos e com a troca de experiências, notamos que também era necessário incluir pessoas transmasculinas que reivindicavam a necessidade de não expressar 100% dos padrões de gênero impostos, e não necessariamente buscam pertencer a esse “mundo” de homens. Hoje, então, o time conta também com a participação de transmasculines (pessoa que se encaixa no guarda chuva masculinino porém não necessariamente se identifica como homem ou mulher), mulheres trans (pessoas que foram designadas homem ao nascer, porém, se identificam e pertencem ao gênero feminino), e travesti (travesti é uma pessoa que foi designada homem no seu nascimento, mas se entende como uma figura feminina).[4] Hoje existem cerca de 15 equipes trans no Brasil e no Cone Sul (incluindo Chile, Argentina e Uruguai). Todas essas equipes se formaram depois da existência do MBB e hoje cada time vem levantando sua bandeira por espaço e direito à prática do futebol.


O objetivo do MBB é acolher pessoas transexuais e travestis para a prática esportiva do futebol, e para além do acolhimento é promover espaço de encontros para facilitar uma rede de solidariedade entre pares. Nossas metas são:

  1. Promover a prática esportiva

  2. Proporcionar atividades que possibilitam a vivência e troca de experiências.

  3. Enriquecer, através de treinos, autoestima, expressão criadora, e competências de socialização.

Nunca foi só futebol: a nossa ideia é sempre trazer de volta não só o sonho de jogar futebol, mas sim trazer visibilidade para os corpos de pessoas trans e travestis que são violentados diariamente. Em demandar espaço no futebol os MBB insistem, que nossos corpos em quadra são arte, ativismo e resistência.


O MBB não se trata de reproduzir os mesmos binários e exclusões das instituições esportivas. O nosso time é necessário para incentivar outros grupos a formarem times inclusivos, uma vez que nossos direitos estão sendo sempre violados. Com o nascimento de times trans, podemos nos unir e mostrar para a sociedade e para o mundo que somos capazes de praticar esporte seja ele qual for. Para que isso aconteça, equipes profissionais precisam estar abertas para acolher jogadores de diversos gêneros, e para além de acolher, sensibilizar os seus elencos para que não haja nenhum tipo de constrangimento. É importante que façamos barulho na Federação Paulista de Futebol para que ela mude as regras e que todo atleta trans possa entrar em qualquer clube desde o momento que manifeste a paixão pelo futebol. Sendo assim, o MBB segue na luta para ocupar esses espaços tão preconceituosos e machistas e para trazer visibilidade para o futebol Trans. Ocupar esses espaços é um ato político que vai além do futebol.


Insistimos num futebol inclusivo e para todes/todas/todos.


FIG 3. Image of Pedro Vieira (co-author of this paper). São Paulo, Brazil. September 2022. Photo credit: Gui Christ @guichrist (Instagram).


Uma Nota sobre Processo e Posicionamento

 

Rapha, Pedro e Cara trabalham juntos desde que se conheceram em um torneio de futebol feminino em São Paulo em 2016. São amigos próximos e colaboradores desde então. O MBB se prepara para comemorar seu aniversário de 6 anos em 26 de agosto de 2022. Como o primeiro time trans do Brasil, o MBB é pioneiro no mundo do esporte e dos direitos LGBTQ+, e seu ativismo se expande para abranger movimentos afro-brasileiros e de direitos negros, antifascistas, e movimentos de classe. Em reconhecimento à sua liderança visionária, os colaboradores decidiram criar um manifesto, utilizando como motivação a edição especial do TSQ sobre Esporte.


Como pessoa não-trans, branque, native de língua inglesa, acadêmique norte-americane, Cara reconhece que seu o relacionamento com o MBB requer o reconhecimento dos diferenciais de poder e a profunda consideração das práticas éticas de pesquisa. Estamos sempre em comunicação para manter um laço forte, e para que possamos continuar a trabalhar juntos. E para além disso, trocamos experiências onde Raphael e Pedro ajudam na sua pesquisa e Cara ajuda os Meninos nas traduções, planejamentos, e aplicação para bolsas.


O processo de criação do manifesto se deu da seguinte forma:


A Cara trouxe a proposta e Raphael concordou em fazê-lo, pois seria um momento importante para o MBB: marca-se 6 anos de existência dos MBB no dia 26 de agosto de 2022 no lançamento da edição especial).


A partir daí nos organizamos para nos reunirmos virtualmente todas as quartas feiras para decidirmos e discutirmos sobre o que colocar no manifesto. Sendo assim, lemos a proposta do manifesto e juntos fizemos um lindo trabalho que é importante para todes nós. Raphael e Pedro colaboraram trazendo a história e bagagem do MBB, Cara contribuiu com a estrutura e tradução para o inglês, e editamos coletivamente. Esperamos que o Manifesto MBB circule amplamente.

 

[1] A proibição afetaria qualquer competição dentro da prefeitura do Rio de Janeiro. [2] Sabendo que o povo indígena já tinha a prática esportiva do futebol, diferente da proposta que era trazida pelo Brasil pelos britânicos. [3] 2010, 2011, e 2012 foi o torneio mundial de futsal feminino. No 2011, jogou na copa américa de futsal feminino. [4] Sobre travesti: “durante muito tempo, o termo era considerado pejorativo ou associado à prostituição. Contudo, atualmente o conceito vem sendo resinificado e passou a ter mais peso político. Há pessoas que afirmam com orgulho que são travestis devido à história do termo.” https://transcendemos.com.br/transcendemosexplica/trans/


Biografia

 

Raphael H. Martins (ele/he || @institutomeninosbonsdebolafc) é o fundador e capitão dos MBB, Educador Social, Palestrante, Diretor Executivo do Instituto Meninos Bons de Bola, Jogador de Futebol Amador, Preto e Periférico.


Pedro Vieira (ele/he || @peduh_carll) é membro fundador e um dos craques do MBB. Pedro é militante dos direitos LGBTQIA+, palestrante, e ativista do movimento trans no Brasil.


Cara Snyder (she/they ela/elu) é professor de Women’s, Gender, and Sexuality Studies na University of Louisville nos EUA. Snyder também ensinou no Instituto Federal do Sertão Pernambucano e na Universidade Federal do Vale do São Francisco no Brasil. Suas áreas de interesse de pesquisa incluem estudos esportivos/físicos culturais, estudos latino-americanos, feminismo transnacional e estudos digitais. Atualmente, Snyder está trabalhando em uma monografia sobre as lutas das mulheres e do futebol LGBTQ+ no Brasil para reivindicar acesso, visibilidade e direitos ao esporte nacional em meio às guerras culturais do final dos anos 1990 - hoje.Trabalhar junto com os MBB (e principalmente com o Rapha e o Pedro) tem sido uma honra e um grande prazer na sua carreira acadêmica.

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